segunda-feira, 16 de novembro de 2009

texto para ator e atriz

desenho: Sandra Nunes


DAS HORAS CRUAS

de Ruy Jobim Neto


Personagens:

AMAURI, homem maduro
MALU, jovem garota


Época: atual
Local: uma metrópole

A ação se passa no atelier do artista, enquanto ele a desenha.
Um atelier sem limites entre o hoje e o vento. O som é de Chet Baker.
....

MALU
A malha fina entre o teu desejo e a minha pele te remete aos teus sonhos.

AMAURI
Eu não desenho sonhos.

MALU
Até ontem. Hoje você é o escritor das formas. Me seduz e me cobre de vontade.

AMAURI
Você seduz.

MALU
Eu me atenho, apenas.

AMAURI
Você fez amor comigo.

MALU
Ainda não. Eu pulei para a carne de tua realidade, só isso. Eu permiti duas ou três iniciativas. Duas ou três. Você bem que soube aproveitar.

AMAURI
E agora te desenho.

MALU
E agora me desenha. Mas eu não paro, você sabe.

AMAURI
Isso. Anda.

MALU
Teu universo criativo.

AMAURI
Anda por entre as florestas.

MALU
Eu caminho por entre as velas acesas.

AMAURI
No meio da videira.

MALU
A videira.

AMAURI
Te posso sentir assim, meio cabernet.

MALU
Eu desando para você. Faço pose e admito que você me esquadrinhe. Eu me sinto assim, uma Mona Lisa.

AMAURI
Gioconda.

MALU
Abaporu.

AMAURI
Nascimento de Vênus.

MALU
Sou Rosa Luxemburgo e sou Pagu.

AMAURI
Pode se vestir agora. O vento não lhe cai bem.

MALU
Sou Olga e sou Anne Frank.

AMAURI
(joga o roupão para ela) Amsterdam é triste.

MALU
É nada.

AMAURI
Chet Baker morreu lá. Pulou.

MALU
Ao lado do sax. Ninguém morre triste em Amsterdam ao lado de um sax.

AMAURI
Veste.

MALU
Eu sigo até você. Olho, me insinuo, te deixo, te engano.

AMAURI
Eu vou te levar a Amsterdam.

MALU
Não. Se você me levar até lá, vai me mostrar onde ele morreu. Não quero.

AMAURI
Eu te quero.

MALU
Eu sei. Por isso te provoco. Por isso me provoco. (veste-se) Minha nudez nada mais é do que a tua imaginação jogando a toalha.

AMAURI
Uma luta?

MALU
Não. É um decolar de emoções. Eu sou mulher. Conheço isso desde que me dou por gente.

AMAURI
Me atiça.

MALU
Isso é uma ordem ou uma afirmação?

AMAURI
Você é Cleópatra.

MALU
Então me morde e me mata.

AMAURI
Já pensou em morrer?

MALU
O tempo todo. Quando não penso nisso, é por que eu tô te seduzindo.

AMAURI
Você é o meu sax?

MALU
Não.

AMAURI
O que é você, então?

MALU
Partitura. A música que eu apresento tem pizzicatos e codas.

AMAURI
Um acorde?

MALU
Não acorde. Deixa que eu mesma te absorva.

AMAURI
Quer um vinho?

MALU
Quero você, antes de tudo. Você perturba a sua própria paz. Você me traz aqui, me atrai, me desperta, me incomoda. Faz tudo o que eu quero. Faz mais do que isso. Me atrapalha.

AMAURI
Meia taça?

MALU
O teu brinquedo não cansa. Quero você nu.

AMAURI
(olha ela pelo vidro da taça, segue como se a filmasse com a taça de vinho) O aroma do cabernet atiça todas as sombras.

MALU
A cidade lá fora não sabe da gente. Você não sabe da gente. Tudo o que você tem sou eu e essa taça. Agora me engole, me degusta, me cheira. Me bebe.

AMAURI
Malu.

MALU
Sem nomes. Lá fora sou Maria Lúcia. Aqui não sou nada além de um vestígio de teu lápis. Fica nu pra mim.

AMAURI
Sou Amauri, mas você me quer outro.

MALU
Nada de nomes. Não sei quem somos. (para a platéia, com foco sobre ela) Dia desses, ele me quis confidente. Fui. Noutro dia, ele me despiu eu estando louca. Uma louca, ele disse. Daquelas que se arrebentam nas pedras. Lembrei logo de Camille. Era a última das loucas. Todas as mãos e os pés são de Camille. Ele pretendeu que nós dois nos amássemos no brilho da lua. Eu falei que não tinha lua, que a lua era uma abstração. Eu me apaixonei, mas não podia demonstrar. O homem maduro te deixa impune, você dá a ele a licença poética para ele te ensinar o que não é ensinável. Eu nem sei se essa palavra existe.

AMAURI
(foco nele) Em Amsterdam não existe.

MALU
(ainda, para a platéia) Eu queria ser Anne Frank e escrever o diário. (apaga o foco dele) Quem sabe eu escreveria até dentro da câmara de gás. Eu sou bem louca para essas coisas. Faço um solilóquio, mas são meus pensamentos que me deixam sem fôlego. Uma guria, disse ele. Uma jovem que cai ao chão toda vez que o tiro corre solto. A bala perdida é o amor que te devora. Ela te penetra as carnes, os músculos, te deixa vulnerável.

AMAURI
(foco nele) Uma guria.

MALU
O homem maduro nada mais é do que a lua. Tem jeito de noite, é abstração. (apaga o foco dele) Faço o solilóquio e percebo que tudo em minha volta se resolve em cantos e velas que quase acendem. Quando a bala te alcança, ela não mede esforços. Ela te agride, te maltrata, te lambuza de medo e noites lindas. Aí vem o dia e te conta histórias. E então você não sabe mais em quem acreditar.

(luz geral retorna)

AMAURI
Até ontem eu tinha um merlot. Comprei uns queijos, mas não tinha a combinação certa.

MALU
Você está me contando isso por quê?

AMAURI
Quero justificar a falta sua ontem à noite, por isso eu tinha a combinação errada.

MALU
E hoje é a certa?

(encerra a música)

AMAURI
O que eu aprendi com você?

MALU
Que não é tão chato assim morrer em Amsterdam com um saxofone ao lado.

AMAURI
Eu disse para mim que fazendo amor contigo hoje seria sufocante.

MALU
Gostei.

AMAURI
Que eu te mataria aos poucos em meus traços, e não deixaria pedra sobre pedra daquilo que eu sei de ti.

MALU
Agora fica nu para mim.

AMAURI
Eu sonhei te beijando, você colorida de todos os matizes, você impregnada de grafite e borracha, você consumida pela ânsia de me deitar, de beijar meu peito, minha pele, de me colocar miserável.

MALU
Você me mataria?

AMAURI
Penso que não.

MALU
E admite que eu suma de sua vida? Que eu brinque de você e pose para teus olhos que não me vêem mais? Que eu partilhe sua perda de gênero homem, quando ganha o gênero hominídeo?

AMAURI
(foco apenas nele, ele para a platéia) Eu não sou Rodin nem sou Botero. Deixo as tintas aguadas para Monet. Meu pontilhismo me alcança à noite, sou dor e é só. A mulher marca presença ao som de Chet Baker só porque Chet Baker pede isso, a música meio que embala um pedido.

MALU
(foco nela) Ei, garçom. Chet Baker. (começa outra faixa de Chet Baker)

AMAURI
O amor que você faz com a garota dos teus delírios é quem leva teu lápis. À noite, na sua cama vazia, a música perpassa as idéias, ela chama o corpo para você, ela chama o corpo até você. (ela se olha num espelhinho) A imaginação brinca com o teu sexo, ela te consome como a segunda parte da música.

MALU
(foco nela) Fica nu pra mim. (apaga o foco dela)

AMAURI
Sem nomes, ela disse. O corpo dela não tem nome, não tem RG. O endereço se perdeu no bolso, o celular não tinha crédito e o e-mail não foi anotado. Só uma garota, no travesseiro. Ela se vira para ser abraçada. Uma guria, eu disse. E aquela pele perseguida em volteios e partes que não se completam é tudo ao mesmo tempo. Para o homem, as curvas são o sinal de bom corpo, de boa prole. Para a guria, a menina, a jovem, nada mais é do que artifício. E ela é a guia para todas as estradas possíveis.

(luz geral)

MALU
Quando vamos fazer amor que nem ontem?

AMAURI
Dança comigo?

MALU
Você e Chet Baker. Por que não muda de faixa?

AMAURI
Meu gosto te inferniza?

MALU
Contanto que você não me leve a Amsterdam.

AMAURI
Vou te levar ao lugar crucial.

MALU
(beija-o) Não.

AMAURI
Malu.

MALU
Sem nomes.

AMAURI
Quer me ouvir dizer “eu te amo”?

MALU
Quero, mas só quando você estiver dentro de mim, preso e miserável.

AMAURI
Quero teu e-mail.

MALU
Nunca.

AMAURI
Me passa o teu celular.

MALU
Enlouqueceu.

AMAURI
Quero te levar até tua casa.

MALU
Vou fugir daqui.

AMAURI
Vou rir de tuas fotos, vou conhecer teus bichos de pelúcia, falar contigo no MSN.

MALU
Escuta aqui, eu sou teu brilho de vida, eu sou teu sopro de vontade, tua coisa que pulsa. Não é pra me moldar, não. Não é assim que eu funciono.

AMAURI
Vou morrer de tesão, pela manhã.

MALU
Eu sei. Você me come com os olhos e me fatia em porções miúdas. Morde meus ombros, meu peito te acaricia e teus dedos são automóveis.

AMAURI
Você é uma cidade.

MALU

Nem tanto. Sou apenas uma estrada vicinal que você percorre à noite, com farol de milha.

AMAURI
Quer mais vinho?

MALU
Quero você. E não penso em competir com ninguém.

AMAURI
Sem nomes, você disse.

MALU
Nossas regras são simples: há uma cidade lá fora, uma metrópole em que centenas, se não for milhares, milhares de casais estão na coesão de seus desejos neste exato instante.

AMAURI
Você fala bonito.

MALU
Aprendi contigo, mas não admito isso na tua frente que é pra não te deixar pior do que eu te encontrei.

AMAURI
Fala mais.

MALU
Teu universo criativo me atordoa. Tuas velas e caminhos aquáticos, tuas florestas me engalfinham. Eu nem sei bem o que somos, o que pensamos das coisas direito. Eu chego aqui, mostro o meu seio, você o acaricia e o beija assim que abre a porta. Eu entro, você me despe e me desperta em beijos.

AMAURI
Continua.

MALU
No instante seguinte, meus pêlos pubianos são tua realidade, apenas. Nada além deles. Tudo o que eu digo de novidade do mundo externo não conta.

AMAURI

Sem nomes, você disse.

MALU
Eu nua, você munido de tesão. O chuveiro despeja água sobre tudo o que somos, e você me acaricia, me enlaça, me penetra brincando. Brincando de mim.

AMAURI
Vou te levar pra Búzios.

MALU
Melhor que Amsterdam, nesse momento. E se os holandeses me prenderem por meia hora numa saleta de aeroporto, o que eu faço? Digo que sou tua e eles me expulsam diretamente para os teus braços? Digo que sou tua e me jogo de costas na cama para você me encontrar inteira?

AMAURI
Se eu tivesse um mapa da tua emoção, um guia das ruas dos teus sentimentos...

MALU
Um mapa não adianta. Você não me desvenda e eu te devoro.

AMAURI
Diga que é minha e eles te expulsam.

MALU
Digo que sou tua e eles carimbam assim no meu passaporte: “persona mais do que non grata”.

AMAURI
Eu te conto as histórias que me contavam quando eu quis viajar.

MALU
Eu sei. E você me leva até Amsterdam nos teus sonhos.

(encerra Chet Baker)

AMAURI
Eu fico nu pra você.

MALU
Não duvido. Eu te completo.

AMAURI
Vou te levar a Belfast. Você vai adorar Positano. Vamos dormir em Zurich e brindar nossas taças no Kremlin.

MALU
Me desenha.

AMAURI
Mais um?

MALU
Eu deito na sua cama, primeiro. E daí você relaxa enquanto eu estiver fazendo as minhas coisas. A lápis.

AMAURI
Sem nomes, você disse.

MALU
Sem nomes, eu disse. E diga que me ama apenas quando você estiver dentro de mim.

AMAURI
Direi.

MALU
Me surpreenda.

AMAURI
Irei te amar como nunca. (começa a se deitar)

MALU
Me fale coisas que eu nunca ouvi. (começa a se deitar também)

AMAURI
Eu já te chamei de Camille Claudel?

MALU
Não farei os pés e as mãos para você. Deixarei a teu critério.

(vão falando simultaneamente)

AMAURI
Olga Benário.

MALU
Billie Holiday.

AMAURI
Tarsila.

MALU
Erêndira.

AMAURI
Rosa Luxemburgo.

MALU
Sarah Kane.

AMAURI
Edith Piaf.

MALU
Frida Khalo.

AMAURI
Clarice.

MALU
Pagu.

AMAURI
Anne Frank.

MALU
Eu sou uma cidade para você. E você toca Chet Baker de fundo em Amsterdam pra mim.

(recomeça Chet Baker)

AMAURI
Meu saxofone.

MALU
Vou adorar morrer nos teus braços.

(luz em resistência ao som da música)


FIM

Novembro de 2009
(C) 2009 Ruy Jobim Neto / todos os direitos reservados
all rights reserved