domingo, 12 de julho de 2009

texto para atriz e ator


DOIS PARA O SAGUÃO
de
Ruy Jobim Neto
..................
"DOIS PARA O SAGUÃO" foi apresentada pela primeira vez nas Satyrianas 2009, no dia 01 de novembro, às 02h30, numa produção da Cia. Mestremundo de Histórias, sob direção de Filipe Peña, no Teatro do Ator, em São Paulo, com a seguinte composição de elenco:
.....
CLAUDIO CABRAL........................Azevedo
ADRIANA CUBAS.......................Bianca

.................

Personagens:
AZEVEDO
BIANCA


Bianca é atriz e procura apartamento. Chove. Ela está isolada na portaria de um prédio onde foi procurar imóvel. Azevedo é o porteiro do final de tarde. Ela não tem mais permissão para ver imóvel algum, pelo horário. Ela está impaciente, ele faz algumas ações do seu personagem, rega planta, arruma tapete, coisas assim.

Época: atual
Ação: o saguão de um prédio

....

BIANCA
Não tem mais como?

AZEVEDO
Tem não.

BIANCA
Nenhum apartamento?

AZEVEDO
O horário já bateu. Não pode ver mais nenhum.

BIANCA
Nem kitchnete?

AZEVEDO
Não tem kitch neste prédio.

BIANCA
Entendo. (tempo. Fica impaciente) E essa chuva, não pára mais, é?

AZEVEDO
Acho que não, moça. Foi todo o feriado assim.

BIANCA
Que bosta. Ops. Desculpe.

AZEVEDO
Tudo bem.

BIANCA
Na sua função você não pode dizer palavrão, né?

AZEVEDO
Não.

BIANCA
Nem o pessoal que mora no prédio?

AZEVEDO
O pessoal diz.

BIANCA
Tipo o quê? Que palavrão, por exemplo?

AZEVEDO
Não posso dizer.

BIANCA
Ah, é. (tempo) E se eu disser?

AZEVEDO
Não pega bem palavrão na boca de mulher.

BIANCA
Quem disse isso?

AZEVEDO
Todo mundo diz.

BIANCA
Todo mundo quem?

AZEVEDO
Todo mundo, oras.

BIANCA
Quem, por exemplo?

AZEVEDO
Os caras lá no boteco.

BIANCA
Eles devem falar palavrão adoidado.

AZEVEDO
O tempo todo.

BIANCA
E você fala palavrão quando tá lá com eles, aposto.

AZEVEDO
Tem que falar, né?

BIANCA
É...Em Roma como os romanos.

AZEVEDO
Quê?

BIANCA
Nada. É só uma expressão.

AZEVEDO
Ah.

(silêncio)

BIANCA
Qual o seu nome?

AZEVEDO
Azevedo.

BIANCA
Só isso? Azevedo?

AZEVEDO
É assim que me chamam.

BIANCA
Quem te chama assim? Os caras lá no boteco?

AZEVEDO
Também.

BIANCA
Também? Tem mais gente que te chama de Azevedo?

AZEVEDO
Minha mãe.

BIANCA
Tua mãe te chama de Azevedo?

AZEVEDO
Ela que espalhou meu nome. E fiquei sendo Azevedo.

BIANCA
Tua mãe?

AZEVEDO
É.

BIANCA
Foi em homenagem ao teu pai? Ele é que é Azevedo?

AZEVEDO
Não. Azevedo foi o último namorado dela.

BIANCA
Entendi ... (tempo) Eu sou atriz.

AZEVEDO
Tá em alguma novela?

BIANCA
Ainda não. Nem sei se quero. Faço teatro e já fiz alguns curtas.

AZEVEDO
Não fez novela?

BIANCA
Não.

AZEVEDO
Nenhuma?

BIANCA
Não.

AZEVEDO
Ah.

BIANCA
Por quê? Você vê televisão? Tem televisão aí, no balcão?

AZEVEDO
Tem não.

BIANCA
Por quê? Não te deixam ver TV?

AZEVEDO
Não. A última vez que vi jogo do Brasil na Copa eu dormi. E aí me tiraram a TV.

BIANCA
Você não pode dormir, né?

AZEVEDO
Não.

BIANCA
(ri) E você dormiu com jogo do Brasil na Copa?

AZEVEDO
Pra você ver.

BIANCA
(para de rir) Entendo. (tempo) Eu já fiz comercial.

AZEVEDO
De cerveja?

BIANCA
Não. De locadora de automóveis. Daquelas grandes, sabe?

AZEVEDO
Nunca vi.

BIANCA
Você tem carro?

AZEVEDO
Não. Eu venho de ônibus, pro trabalho. Às vezes venho de bicicleta.

BIANCA
Por isso você não vê comercial de locadora de carro.

AZEVEDO
É.

(silêncio)

BIANCA
Você é casado, Azevedo? Posso te chamar assim, de Azevedo?

AZEVEDO
Pode. Mas não sou casado, não. Sou amasiado.

BIANCA
Amasiado.

AZEVEDO
É. Eu vivo com uma mulher.

BIANCA
Ela faz o quê?

AZEVEDO
Atriz é sempre curiosa, desse jeito?

BIANCA
Eu sou curiosa. Tua mulher faz o quê?

AZEVEDO
Ela não é minha mulher. É amasiada.

BIANCA
Ah.

AZEVEDO
Ela cozinha num restaurante por quilo.

BIANCA
E é tua amasiada por quê?

AZEVEDO
Cê é curiosa, hein?

BIANCA
Sou mesmo.

AZEVEDO
A gente tá esperando o momento certo pra se casar.

BIANCA
Momento certo? Que momento certo?

AZEVEDO
A hora de juntar os trocados.

BIANCA
A vida é curta, Azevedo. Se não casar, fica pra titio. Você daria um bom titio, Azevedo?

AZEVEDO
Sou filho único.

BIANCA
E mesmo assim tua mãe te chama de Azevedo?

AZEVEDO
É.

BIANCA
Por causa do ex dela?

AZEVEDO
É.

BIANCA
Ah, pelo amor de Deus! Que é isso!

AZEVEDO
Sou Azevedo e pronto.

BIANCA
Claro que não! Ninguém é “Azevedo e pronto”! Qual o teu primeiro nome?

AZEVEDO
Pelópidas.

(tempo)

BIANCA
É melhor Azevedo, mesmo.

AZEVEDO
Não falei?

(silêncio)

BIANCA
Posso te chamar de Pelópidas?

AZEVEDO
Não. Eu sou Azevedo.

BIANCA
Se eu te chamar de Pelópidas, você me responde?

AZEVEDO
Não. Já me acostumei com Azevedo.

BIANCA
Entendo. (tempo) Sabe quem era Pelópidas?

AZEVEDO
Não.

BIANCA
Um ator famoso. O Paulo Gracindo, lembra dele? Ele era Pelópidas. Aí ele trocou o nome.

AZEVEDO
Que nem eu.

BIANCA
Mas no caso dele, ele já era ator, sabe? E ninguém ia chamar ele de Pelópidas isso, Pelópidas aquilo. “O grande ator Pelópidas tal coisa”. Não. Ele trocou o nome.

AZEVEDO
O meu foi minha mãe que trocou.

BIANCA
É, eu sei. No caso dele, até as pessoas chamavam ele de outra coisa. Teve uma empregada que chamava ele de “Seu Petrópolis”.

AZEVEDO
Ninguém sabe o meu nome. Só a senhorita.

BIANCA
Senhorita? Que bonitinho. É difícil um cavalheiro chamar uma dama de senhorita, hoje em dia. Aposto que você não usa nem internet, não é? Você sabe o que é internet, Pelópidas, ops....Desculpe...Azevedo?

AZEVEDO
Sei. Um cara da internet vem instalar nos apartamentos quase toda semana. Ou vem fazer reparo.

BIANCA
Mas você nunca acessou? Quer dizer, nunca entrou na internet? Você tem computador?

AZEVEDO
Na administração do prédio tem computador. Eu mesmo nunca mexi num.

BIANCA
Que dó.

AZEVEDO
Que dó nada. O pastor lá na Igreja diz que computador é coisa do demo.

BIANCA
Você acredita nisso?

AZEVEDO
Se o pastor disse.

BIANCA
Mas isso é o pastor dizendo. E você, mesmo, o que acha?

AZEVEDO
Eu acho isso que o pastor disse.

BIANCA
Tá.

(silêncio)

BIANCA
Essa chuva não pára, né?

AZEVEDO
É.

BIANCA
Vem pouca gente aqui nesse prédio.

AZEVEDO
É feriado. Não tem ninguém na cidade.

BIANCA
Mas uma cidade tão grande. Com tanta gente, tanto carro...(tempo) E você... você já fez alguma perversão, Azevedo?

AZEVEDO
Se eu fiz o quê?

BIANCA
Alguma perversão. Uma perversãozinha, assim, de vez em quando nessa sua vida.

AZEVEDO
Fiz não. É pecado, o pastor disse.

BIANCA
Ah, mas esse pastor não sabe toda a verdade da vida, não.

AZEVEDO
Claro que sabe. Ele lê muita coisa.

BIANCA
Mas não é tudo o que tá escrito que é verdade, Azevedo.

AZEVEDO
Que conversa, essa.

BIANCA
Se você fizesse alguma perversão, que perversão faria?

AZEVEDO
Eu não posso pensar nessas coisas, não, moça.

BIANCA
Me chama pelo meu nome. Meu nome é Bianca.

AZEVEDO
Não é costume aqui do prédio chamar as pessoas pelo nome.

BIANCA
Chama do quê, então?

AZEVEDO
De senhor, de senhora, de senhorita.

BIANCA
Afe. Quem determinou isso?

AZEVEDO
São as regras.

BIANCA
Nossa, mas que prédio mais rigoroso. Ainda bem que não consigo alugar apartamento aqui, tá muito caro. Já pensou se eu alugasse e viesse morar aqui? Credo! Nem gosto de pensar!

AZEVEDO
É um bom prédio, esse.

BIANCA
É muito rigoroso! Pra quem gosta de ser chamado de senhor, de senhora ou senhorita, tá bem, mas não pra quem não tá acostumada...Feito eu.

AZEVEDO
Então não daria certo, mesmo.

BIANCA
É. (tempo) Mas você enrolou, enrolou, desviou e não respondeu à minha pergunta. Então, Azevedo, que perversão você faria?

AZEVEDO
Nenhuma.

BIANCA
Nenhuma? Nenhuminha? (aproxima-se) Assim, nem uma perversãozinha? No final de uma tarde, uma chuva danada lá fora, com tanto apartamento vazio lá em cima, de dois quartos, sem móveis, e eu aqui, uma pobre coitada sem teto e sem casa, procurando imóvel. Não te dá nenhuma vontade? Você não pensa em nada disso, não?

AZEVEDO
Pensar eu penso, que sou homem!

BIANCA
Ahá! Chegamos a um denominador comum!

AZEVEDO
O quê?

BIANCA
Você, porteiro da tarde, Azevedo Pelópidas, ou Pelópidas Azevedo, sei lá, e eu, atriz, Bianca Matheus, brasileira, adulta e vacinada e sem teto...Não te passa uma vontade, às vezes, quando você vê uma mulher bonita feito eu, assim? Uma vontade louca de transgredir, de fazer uma loucura que você nunca fez e de que vai lembrar pra sempre nessa sua vida de bosta?

AZEVEDO
A senhorita tá passando bem?

BIANCA
Porra! Me chama de Bianca, caralho! Esse é o meu nome, Pelópidas!

AZEVEDO
Azevedo, por favor.

BIANCA
Humm...(aproxima-se, lânguida) Tá ficando enfezadinho, é?

AZEVEDO
Eu vou ter que colocar a senhorita pra fora do prédio...

BIANCA
Por quê? O que eu fiz? Eu te apontei uma arma? Te machuquei? Te xinguei, por acaso?

AZEVEDO
Não é o que a senhorita fez, mas é o que a senhorita tá pensando em fazer.

BIANCA
Bianca, porra! Custa me chamar de Bianca?

AZEVEDO
Eu vou ter que expulsar a senhorita.

BIANCA
Expulsar por quê? Só porque eu disse “porra”?

AZEVEDO
A senhorita sabe que não.

BIANCA
Bianca.

AZEVEDO
(corrige) Bianca.

BIANCA
Então é pelo quê? Hummm.....Você está ficando excitado com toda essa minha conversa, né? Tá todo excitado, aí, posso até ver...Humm...Eu, uma branquelinha linda, assim, no final de tarde, dando sopa na sua portaria, no saguão desse prédio de apartamentos caros, um monte de apartamento vazio lá em cima, cheio de quartos, com banheiras, com janelas que dão pros outros prédios...Convidando você pra uma perversãozinha no meio de um feriado com chuva...

AZEVEDO
Eu vou ter que expulsar a senhorita...

BIANCA
Experimenta! Toca em mim! Me pega! Me arrasta pra fora!

AZEVEDO
Eu não costumo machucar mulher.

BIANCA
(irônica) Oh... (aproxima-se ainda mais) Um homem cavalheiro...Daqueles tão cavalheiros que vê uma oportunidade passar embaixo da sua fuça e não pega... E depois vai pra casa, e pra não pensar nisso, vai dar uma com a mulher...

AZEVEDO
Amasiada.

BIANCA
Tá, que seja. Com a amasiada...E aqui mesmo, nesse saguão, já que você não tem nem TV e nem ninguém a não ser eu? Não te passa nada pela cabeça não, Pelópídas?

AZEVEDO

Azevedo, por favor.

BIANCA
E se eu transgredir e te chamar de Pelópidas, você vai fazer o quê comigo? Vai me bater? Vai me expulsar daqui nessa chuva toda? Ou eu posso entrar nos elevadores e subir lá pra um dos apartamentos vazios e você nem vai saber onde me encontrar?

AZEVEDO
Eu tenho todas as chaves aqui comigo.

BIANCA
Que excitante... (parte pra cima dele) Um homem sem transgressão. Com todas as chaves do prédio. Um homem com acesso, com mulher amasiada, com mãe que batiza ele com sobrenome do namorado, que não vê TV nem comercial de locadora de carro, que não entra na internet, que não faz o que tá pensando só porque o pastor assim determina...

(AZEVEDO agarra BIANCA e tasca um beijo nela, solta ela em seguida, limpa os lábios com a manga comprida da camisa, ela jogada no chão olha pra ele, se desconcerta)

AZEVEDO
Melhor a senhorita ir embora.

BIANCA
É. Senão você me ataca aqui mesmo, nesse saguão. E vou me embora nessa chuva toda. Vou ficar toda molhada, vou pegar uma gripe daquelas, e tudo por culpa desse teu beijo de merda.

AZEVEDO
Eu vou pedir perdão ao pastor.

BIANCA
Vai ter que fazer mais do que isso. Você vai trepar com sua amasiada, hoje à noite, pensando em mim. E quando você ligar a TV e me vir no comercial da locadora de carro, não vai nem poder contar pra ela, nem pros seus amigos do boteco, que me deu um beijo. Ninguém vai acreditar em você. Sorte a sua que esse prédio aqui não tem câmera, senão a coisa ia complicar ainda mais pro teu lado, Pelópidas. Ops. Desculpa. Azevedo.

(ele faz menção de ir em direção a ela, de novo)

BIANCA
(afasta-se) Tá bem. Eu vou agora. Mas fique sabendo que você jamais irá se esquecer de mim. Nem que o seu último pensamento esteja quase vomitando por sua cabeça, mesmo assim eu me vou. Obrigada, viu, Azevedo? Tchau, Azevedo. (sai)

(tempo)

AZEVEDO
(pega o celular, liga) Mãe? Oi, minha mãe. Sou eu, seu filho, Pelópidas. (...) Não, mãe! Não, Azevedo não! Puta que pariu! Meu nome é Pelópidas, minha mãe! Pe-ló-pi-d...(ela desliga)...Mãe? ...Mãe?.... Mãe?

(blecaute)

FIM


Julho de 2009.

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