“DOS MUROS DA CIDADE
EU VI TEUS OLHOS”
Peça curta de
RUY JOBIM NETO
Personagens:
LUCINHA
ANDRÉ
Época: 1932
Local: alguma cidade do interior paulista, durante a Revolução
***
(cena: disparos e muitas luzes, ao longe, cruzam a noite do lugarejo. ANDRÉ está numa murada, observando. LUCINHA traz café. Há uma apreensão no ar)
ANDRÉ
Já não disse pra você ficar dentro da sua casa?
LUCINHA
Mal agradecido. Trouxe café quentinho.
ANDRÉ
Me deixa tomar um gole.
LUCINHA
(brinca com ANDRÉ, mas depois passa a ele a canequinha) Essas luzes estão muito longe?
ANDRÉ
Não. (bebe um gole do café)
LUCINHA
Não é perigoso?
ANDRÉ
Sempre é perigoso, Lucinha.
LUCINHA
Ai, André! Também não é assim. Eu saio de minha casa pensando em conversar um cadinho com você e olha como você me recebe.
ANDRÉ
Lucinha, eu queria mesmo era estar lá.
LUCINHA
Na frente de batalha?
ANDRÉ
É.
LUCINHA
Por Getúlio ou por São Paulo?
ANDRÉ
Que pergunta.
LUCINHA
Você nunca me diz nada.
ANDRÉ
Claro que eu digo.
LUCINHA
Ora, temos só duas alternativas. São Paulo está lutando. Ouvi meu pai dizer que São Paulo quer a separação. E Getúlio não quer dar. Daí toda essa bagunça. Fiquei sabendo que tem cidade aí que só sobrou o padre e o prefeito. Todo mundo foi embora.
ANDRÉ
Seu irmão vai pra luta?
LUCINHA
Vai.
ANDRÉ
Eu vou com ele, Lucinha.
LUCINHA
Não seja besta, André. Meu irmão já tem idade de ir pra luta. Você só tem dezesseis. E eu também.
ANDRÉ
Eu vou aumentar a minha idade. Vou fingir que sou adulto.
LUCINHA
E sua mãe vai deixar você ir junto com as tropas? Tô pra ver.
ANDRÉ
Você nunca acredita em mim, não é mesmo?
LUCINHA
Não sei. O que você tem pra me dizer?
ANDRÉ
Lucinha, eu quero sair deste canto de mundo. Eu quero ser alguém.
LUCINHA
Você já é alguém, André.
ANDRÉ
Você não me entendeu. Eu não sou nada, não sei coisa alguma. O que eu tenho feito, durante toda essa minha vida, me diz? Arado a terra? Ordenhado vaca? Andado a cavalo? Isso é vida?
LUCINHA
Você tem toda uma vida aqui, André, não tá vendo?
ANDRÉ
Eu quero mais, Lucinha.
LUCINHA
Eu também quero mais, André. O que vai ser de mim se você for pra batalha? Já pensou nisso? E se você morre?
ANDRÉ
Vira essa boca pra lá.
LUCINHA
Vira essa boca pra cá você, André. Por que você foge tanto assim de mim?
ANDRÉ
Que deu em você?
LUCINHA
Nada. Apenas quero mostrar pra você que ir pra essa batalha não é tudo nessa vida.
ANDRÉ
Ué? E o seu irmão não vai?
LUCINHA
É diferente, André.
ANDRÉ
Como assim “é diferente”, Lucinha? Eu não tenho duas pernas, que nem ele?
LUCINHA
Tem.
ANDRÉ
Dois braços? Uma cabeça que pensa? Eu não tenho tudo isso?
LUCINHA
Claro que tem, André.
ANDRÉ
Então, qual é a diferença, posso saber? Ouvi pelo rádio que as tropas de Getúlio estão entrando por todo o Estado, por tudo quanto é lado. Isso bate estranho dentro da gente, Lucinha. Nunca se sabe o dia de amanhã. Antigamente as coisas eram mais tranqüilas. Não são mais.
LUCINHA
Não fala assim, André.
ANDRÉ
Eu sinto uma coisa aqui no meu peito, algo que me aperta aqui dentro. Não sei dizer o que é, sabe?
LUCINHA
Você quer ficar aqui e tá se borrando de medo, não é?
ANDRÉ
E eu lá sou homem pra ficar me borrando de medo? Olha como fala comigo!
LUCINHA
Ih, moleque... Tá me estranhando, é? Pensa que eu não conheço você? Sei tudo o que você pensa, aí dentro dessa sua cabeça oca.
ANDRÉ
Eu vou pra essa batalha, Lucinha. Eu vou fazer valer essa minha vida. E vai ser hoje mesmo.
LUCINHA
Que maluquice é essa, posso saber? O que você vai fazer, me diz? Vai fazer as trouxas, vai sair no meio da madrugada sem ao menos dar um único beijo na sua mãe, vai se alistar nas tropas paulistas e pegar um trem pra sabe lá Deus onde?
ANDRÉ
Isso mesmo.
LUCINHA
Pois vá. Vá, André. Vá ser besta na vida. Vá morrer no primeiro bombardeio, na primeira granada que tiver, vá ficar sem uma perna.
ANDRÉ
Quer parar, Lucinha? Tá me agourando, é?
LUCINHA
André. Eu sei o que se passa no seu coração. Sei melhor do que você mesmo.
ANDRÉ
Lucinha.
LUCINHA
Agora me escuta, André. Há muito tempo que eu sei o que você sente por mim, e isso conta, sabia? Todas aquelas nossas brincadeiras correndo, tomando banho no rio, pulando cercado, subindo em árvore. Pensa que eu não lembro dessas coisas? Pensa que eu não reparo nos seus olhares pra mim, no meio das festas? E de como isso me enche por dentro? Eu sou mulher, André. Sou novinha, mas já posso ter uma vida. Daqui a pouco eu vou me casar, sabe lá Deus com quem. E eu preferiria me casar com você.
ANDRÉ
Comigo?
LUCINHA
Com você, André. Você acha que eu não morro de medo de você se bandear pra essa revolução sem eira nem beira e morrer por aí? De eu nunca mais ver você? E aí num belo dia, a gente recebe um telegrama dizendo que você foi morto em batalha, que foi um herói? E pra que isso serve, André? Você não pensa nessas coisas?
ANDRÉ
Casar comigo?
LUCINHA
É, André. Ou você quer que eu me case com algum caixeiro viajante por aí? Alguém que me leve pra capital e me encha de filho, e eu fique trancada dentro de um casebre, num bairro fedorento e cheio de gente estranha?
ANDRÉ
Não, Lucinha.
LUCINHA
Eu penso nessas coisas, André. Uma batalha é tudo muito bonito, muito cheio das valentias, coisa e tal. Mas as pessoas morrem, ou voltam pra casa sem uma perna, sem um braço. Isso tudo um dia vai acabar, sabe lá Deus quando. Se é São Paulo, se é Getúlio que vai ganhar, não sei. Pra dizer a verdade nem quero saber.
ANDRÉ
Não?
LUCINHA
Eu também sinto coisas aqui dentro de mim, André. E quando eu coloco meus pés na terra, aí é que eu sinto que eu pertenço a alguma coisa. Não sei se você me entende.
ANDRÉ
Mas o seu irmão não vai...
LUCINHA
O meu irmão tem vinte e dois anos. Chegou a hora dele. A sua ainda não, será que você não percebe isso? É tão complicado assim?
ANDRÉ
E se eu for pra batalha e depois voltar pra me casar com você?
LUCINHA
Não conte com isso, André.
ANDRÉ
Por quê?
LUCINHA
Nunca se sabe o dia de amanhã, não foi você mesmo quem disse isso?
ANDRÉ
Tá me ameaçando, Lucinha?
LUCINHA
Não. Eu só estou querendo mostrar coisas pra você.
ANDRÉ
Me dá um beijo de boa sorte?
LUCINHA
Como é que é? Um beijo?
ANDRÉ
É. Um beijo de boa sorte.
LUCINHA
E depois você se bandeia pra essa guerra?
ANDRÉ
É.
LUCINHA
E depois você sai no meio da madrugada, sem dar um único beijo na sua mãe, e pega o trem e vai pro front de batalha?
ANDRÉ
É.
LUCINHA
Não. Fique longe de mim. Beijo é o que você não vai ter de mim de modo algum.
ANDRÉ
E se eu virar um herói?
LUCINHA
Sem beijo, André.
ANDRÉ
E seu for condecorado, e ganharmos essa revolução e me derem dinheiro suficiente para eu morar na capital, em São Paulo, ou quem sabe... No Rio de Janeiro? Já imaginou?
LUCINHA
Sem beijo, André. Nem vem.
ANDRÉ
Lucinha, assim você me põe louco.
LUCINHA
Ótimo.
ANDRÉ
Um beijo.
LUCINHA
Não.
ANDRÉ
Ué, não foi você mesma que falou que se casaria comigo?
LUCINHA
Daqui uns dois ou três anos, quem sabe.
ANDRÉ
Então, Lucinha.
LUCINHA
Ai, mocinho. É impressionante como vocês têm idealismo. Chega a ser bonito, sabia? Eu também não sei nada desta vida, e queria aprender ao seu lado.
ANDRÉ
Então, Lucinha.
LUCINHA
André, nem vem. Põe essa sua cabeça pra pensar. E depois você me diz se eu não estou certa.
ANDRÉ
(tempo) E se eu disser que eu amo você, Lucinha?
LUCINHA
Nem vem, André.
ANDRÉ
Eu não sei falar essas coisas. Mas eu penso que a gente, em algum momento dessa vida, a gente tem que amarrar o cavalo, sabe?
LUCINHA
Amarrar o cavalo?
ANDRÉ
Eu penso em ter alguma coisa a mais além das terras do meu pai, quando ele morrer. Eu penso em ir pra capital, pra alguma capital, não importa. Eu quero uma vida diferente, Lucinha.
LUCINHA
E o que tem você dizer que me ama com isso tudo? Você quer me levar junto?
ANDRÉ
Eu não sei pensar essas coisas direito. Mas no dia-a-dia desta fazenda, ordenhando vaca, plantando fruta e verdura, eu sinto que não vou crescer. E aí me aparece essa batalha toda, essa gente toda indo pra revolução, o seu irmão, essa coisa que parece que não tem fim.
LUCINHA
Eu posso ajudar você, André.
ANDRÉ
Tem coisa que eu não sei qual é o limite que o homem faz, ou a mulher faz. Eu vejo o meu pai cuidar das contas, a minha mãe fazer os quartos, a comida. E eu acho isso tão pouco. E daí eu vejo esses soldados indo para a frente de batalha. Eles têm um brilho nos olhos, você já viu o brilho nos olhos deles, Lucinha?
LUCINHA
Não.
ANDRÉ
Tem tanta coisa que eu não sei dizer.
LUCINHA
Você já disse, André. (beija-o delicadamente, com muita ternura) Vá, meu soldado. Parece que eu estava vendo esta cena num sonho meu. A gente se despedia, você fazia sua trouxa, pegava um trem, e eu ia até à murada da estação pra ver o que se passava aí dentro do seu coração, bem de longe. Aí, eu pude sentir, dos muros da cidade eu vi os seus olhos, e vi que eles não eram pra mim.
ANDRÉ
Lucinha. (tenta beijá-la, ela se esquiva)
LUCINHA
E eu posso ser muito melhor mulher para você, estando de longe, André. É muito estranho eu dizer isso, justamente eu que tenho esses meus olhos brilhando quando eu vejo você. É hora de eu aprender, também. Vá. Eu já dei o beijo de boa sorte. Me devolve a caneca de café.
ANDRÉ
E se eu morrer, Lucinha?
LUCINHA
Eu vou ler o telegrama.
ANDRÉ
E se eu voltar, Lucinha?
LUCINHA
Eu vou ler o telegrama.
(ANDRÉ devolve a canequinha para LUCINHA, que olha para o fundo dela, vê que ainda tem café)
LUCINHA
E trago um café quentinho.
(LUCINHA bebe o último gole, olhando para ele, e depois sorri, enquanto as luzes se apagam em resistência, sob os lampejos ao longe, da batalha).
FIM
O texto acima está protegido pelas Leis brasileiras de Direito Autoral. É obrigatório que se solicite permissão para ser montado. Não fazê-lo será passível de ações legais. Para solicitação, falar com o autor: jobimneto.ruy@gmail.com
EU VI TEUS OLHOS”
Peça curta de
RUY JOBIM NETO
Personagens:
LUCINHA
ANDRÉ
Época: 1932
Local: alguma cidade do interior paulista, durante a Revolução
***
(cena: disparos e muitas luzes, ao longe, cruzam a noite do lugarejo. ANDRÉ está numa murada, observando. LUCINHA traz café. Há uma apreensão no ar)
ANDRÉ
Já não disse pra você ficar dentro da sua casa?
LUCINHA
Mal agradecido. Trouxe café quentinho.
ANDRÉ
Me deixa tomar um gole.
LUCINHA
(brinca com ANDRÉ, mas depois passa a ele a canequinha) Essas luzes estão muito longe?
ANDRÉ
Não. (bebe um gole do café)
LUCINHA
Não é perigoso?
ANDRÉ
Sempre é perigoso, Lucinha.
LUCINHA
Ai, André! Também não é assim. Eu saio de minha casa pensando em conversar um cadinho com você e olha como você me recebe.
ANDRÉ
Lucinha, eu queria mesmo era estar lá.
LUCINHA
Na frente de batalha?
ANDRÉ
É.
LUCINHA
Por Getúlio ou por São Paulo?
ANDRÉ
Que pergunta.
LUCINHA
Você nunca me diz nada.
ANDRÉ
Claro que eu digo.
LUCINHA
Ora, temos só duas alternativas. São Paulo está lutando. Ouvi meu pai dizer que São Paulo quer a separação. E Getúlio não quer dar. Daí toda essa bagunça. Fiquei sabendo que tem cidade aí que só sobrou o padre e o prefeito. Todo mundo foi embora.
ANDRÉ
Seu irmão vai pra luta?
LUCINHA
Vai.
ANDRÉ
Eu vou com ele, Lucinha.
LUCINHA
Não seja besta, André. Meu irmão já tem idade de ir pra luta. Você só tem dezesseis. E eu também.
ANDRÉ
Eu vou aumentar a minha idade. Vou fingir que sou adulto.
LUCINHA
E sua mãe vai deixar você ir junto com as tropas? Tô pra ver.
ANDRÉ
Você nunca acredita em mim, não é mesmo?
LUCINHA
Não sei. O que você tem pra me dizer?
ANDRÉ
Lucinha, eu quero sair deste canto de mundo. Eu quero ser alguém.
LUCINHA
Você já é alguém, André.
ANDRÉ
Você não me entendeu. Eu não sou nada, não sei coisa alguma. O que eu tenho feito, durante toda essa minha vida, me diz? Arado a terra? Ordenhado vaca? Andado a cavalo? Isso é vida?
LUCINHA
Você tem toda uma vida aqui, André, não tá vendo?
ANDRÉ
Eu quero mais, Lucinha.
LUCINHA
Eu também quero mais, André. O que vai ser de mim se você for pra batalha? Já pensou nisso? E se você morre?
ANDRÉ
Vira essa boca pra lá.
LUCINHA
Vira essa boca pra cá você, André. Por que você foge tanto assim de mim?
ANDRÉ
Que deu em você?
LUCINHA
Nada. Apenas quero mostrar pra você que ir pra essa batalha não é tudo nessa vida.
ANDRÉ
Ué? E o seu irmão não vai?
LUCINHA
É diferente, André.
ANDRÉ
Como assim “é diferente”, Lucinha? Eu não tenho duas pernas, que nem ele?
LUCINHA
Tem.
ANDRÉ
Dois braços? Uma cabeça que pensa? Eu não tenho tudo isso?
LUCINHA
Claro que tem, André.
ANDRÉ
Então, qual é a diferença, posso saber? Ouvi pelo rádio que as tropas de Getúlio estão entrando por todo o Estado, por tudo quanto é lado. Isso bate estranho dentro da gente, Lucinha. Nunca se sabe o dia de amanhã. Antigamente as coisas eram mais tranqüilas. Não são mais.
LUCINHA
Não fala assim, André.
ANDRÉ
Eu sinto uma coisa aqui no meu peito, algo que me aperta aqui dentro. Não sei dizer o que é, sabe?
LUCINHA
Você quer ficar aqui e tá se borrando de medo, não é?
ANDRÉ
E eu lá sou homem pra ficar me borrando de medo? Olha como fala comigo!
LUCINHA
Ih, moleque... Tá me estranhando, é? Pensa que eu não conheço você? Sei tudo o que você pensa, aí dentro dessa sua cabeça oca.
ANDRÉ
Eu vou pra essa batalha, Lucinha. Eu vou fazer valer essa minha vida. E vai ser hoje mesmo.
LUCINHA
Que maluquice é essa, posso saber? O que você vai fazer, me diz? Vai fazer as trouxas, vai sair no meio da madrugada sem ao menos dar um único beijo na sua mãe, vai se alistar nas tropas paulistas e pegar um trem pra sabe lá Deus onde?
ANDRÉ
Isso mesmo.
LUCINHA
Pois vá. Vá, André. Vá ser besta na vida. Vá morrer no primeiro bombardeio, na primeira granada que tiver, vá ficar sem uma perna.
ANDRÉ
Quer parar, Lucinha? Tá me agourando, é?
LUCINHA
André. Eu sei o que se passa no seu coração. Sei melhor do que você mesmo.
ANDRÉ
Lucinha.
LUCINHA
Agora me escuta, André. Há muito tempo que eu sei o que você sente por mim, e isso conta, sabia? Todas aquelas nossas brincadeiras correndo, tomando banho no rio, pulando cercado, subindo em árvore. Pensa que eu não lembro dessas coisas? Pensa que eu não reparo nos seus olhares pra mim, no meio das festas? E de como isso me enche por dentro? Eu sou mulher, André. Sou novinha, mas já posso ter uma vida. Daqui a pouco eu vou me casar, sabe lá Deus com quem. E eu preferiria me casar com você.
ANDRÉ
Comigo?
LUCINHA
Com você, André. Você acha que eu não morro de medo de você se bandear pra essa revolução sem eira nem beira e morrer por aí? De eu nunca mais ver você? E aí num belo dia, a gente recebe um telegrama dizendo que você foi morto em batalha, que foi um herói? E pra que isso serve, André? Você não pensa nessas coisas?
ANDRÉ
Casar comigo?
LUCINHA
É, André. Ou você quer que eu me case com algum caixeiro viajante por aí? Alguém que me leve pra capital e me encha de filho, e eu fique trancada dentro de um casebre, num bairro fedorento e cheio de gente estranha?
ANDRÉ
Não, Lucinha.
LUCINHA
Eu penso nessas coisas, André. Uma batalha é tudo muito bonito, muito cheio das valentias, coisa e tal. Mas as pessoas morrem, ou voltam pra casa sem uma perna, sem um braço. Isso tudo um dia vai acabar, sabe lá Deus quando. Se é São Paulo, se é Getúlio que vai ganhar, não sei. Pra dizer a verdade nem quero saber.
ANDRÉ
Não?
LUCINHA
Eu também sinto coisas aqui dentro de mim, André. E quando eu coloco meus pés na terra, aí é que eu sinto que eu pertenço a alguma coisa. Não sei se você me entende.
ANDRÉ
Mas o seu irmão não vai...
LUCINHA
O meu irmão tem vinte e dois anos. Chegou a hora dele. A sua ainda não, será que você não percebe isso? É tão complicado assim?
ANDRÉ
E se eu for pra batalha e depois voltar pra me casar com você?
LUCINHA
Não conte com isso, André.
ANDRÉ
Por quê?
LUCINHA
Nunca se sabe o dia de amanhã, não foi você mesmo quem disse isso?
ANDRÉ
Tá me ameaçando, Lucinha?
LUCINHA
Não. Eu só estou querendo mostrar coisas pra você.
ANDRÉ
Me dá um beijo de boa sorte?
LUCINHA
Como é que é? Um beijo?
ANDRÉ
É. Um beijo de boa sorte.
LUCINHA
E depois você se bandeia pra essa guerra?
ANDRÉ
É.
LUCINHA
E depois você sai no meio da madrugada, sem dar um único beijo na sua mãe, e pega o trem e vai pro front de batalha?
ANDRÉ
É.
LUCINHA
Não. Fique longe de mim. Beijo é o que você não vai ter de mim de modo algum.
ANDRÉ
E se eu virar um herói?
LUCINHA
Sem beijo, André.
ANDRÉ
E seu for condecorado, e ganharmos essa revolução e me derem dinheiro suficiente para eu morar na capital, em São Paulo, ou quem sabe... No Rio de Janeiro? Já imaginou?
LUCINHA
Sem beijo, André. Nem vem.
ANDRÉ
Lucinha, assim você me põe louco.
LUCINHA
Ótimo.
ANDRÉ
Um beijo.
LUCINHA
Não.
ANDRÉ
Ué, não foi você mesma que falou que se casaria comigo?
LUCINHA
Daqui uns dois ou três anos, quem sabe.
ANDRÉ
Então, Lucinha.
LUCINHA
Ai, mocinho. É impressionante como vocês têm idealismo. Chega a ser bonito, sabia? Eu também não sei nada desta vida, e queria aprender ao seu lado.
ANDRÉ
Então, Lucinha.
LUCINHA
André, nem vem. Põe essa sua cabeça pra pensar. E depois você me diz se eu não estou certa.
ANDRÉ
(tempo) E se eu disser que eu amo você, Lucinha?
LUCINHA
Nem vem, André.
ANDRÉ
Eu não sei falar essas coisas. Mas eu penso que a gente, em algum momento dessa vida, a gente tem que amarrar o cavalo, sabe?
LUCINHA
Amarrar o cavalo?
ANDRÉ
Eu penso em ter alguma coisa a mais além das terras do meu pai, quando ele morrer. Eu penso em ir pra capital, pra alguma capital, não importa. Eu quero uma vida diferente, Lucinha.
LUCINHA
E o que tem você dizer que me ama com isso tudo? Você quer me levar junto?
ANDRÉ
Eu não sei pensar essas coisas direito. Mas no dia-a-dia desta fazenda, ordenhando vaca, plantando fruta e verdura, eu sinto que não vou crescer. E aí me aparece essa batalha toda, essa gente toda indo pra revolução, o seu irmão, essa coisa que parece que não tem fim.
LUCINHA
Eu posso ajudar você, André.
ANDRÉ
Tem coisa que eu não sei qual é o limite que o homem faz, ou a mulher faz. Eu vejo o meu pai cuidar das contas, a minha mãe fazer os quartos, a comida. E eu acho isso tão pouco. E daí eu vejo esses soldados indo para a frente de batalha. Eles têm um brilho nos olhos, você já viu o brilho nos olhos deles, Lucinha?
LUCINHA
Não.
ANDRÉ
Tem tanta coisa que eu não sei dizer.
LUCINHA
Você já disse, André. (beija-o delicadamente, com muita ternura) Vá, meu soldado. Parece que eu estava vendo esta cena num sonho meu. A gente se despedia, você fazia sua trouxa, pegava um trem, e eu ia até à murada da estação pra ver o que se passava aí dentro do seu coração, bem de longe. Aí, eu pude sentir, dos muros da cidade eu vi os seus olhos, e vi que eles não eram pra mim.
ANDRÉ
Lucinha. (tenta beijá-la, ela se esquiva)
LUCINHA
E eu posso ser muito melhor mulher para você, estando de longe, André. É muito estranho eu dizer isso, justamente eu que tenho esses meus olhos brilhando quando eu vejo você. É hora de eu aprender, também. Vá. Eu já dei o beijo de boa sorte. Me devolve a caneca de café.
ANDRÉ
E se eu morrer, Lucinha?
LUCINHA
Eu vou ler o telegrama.
ANDRÉ
E se eu voltar, Lucinha?
LUCINHA
Eu vou ler o telegrama.
(ANDRÉ devolve a canequinha para LUCINHA, que olha para o fundo dela, vê que ainda tem café)
LUCINHA
E trago um café quentinho.
(LUCINHA bebe o último gole, olhando para ele, e depois sorri, enquanto as luzes se apagam em resistência, sob os lampejos ao longe, da batalha).
FIM
O texto acima está protegido pelas Leis brasileiras de Direito Autoral. É obrigatório que se solicite permissão para ser montado. Não fazê-lo será passível de ações legais. Para solicitação, falar com o autor: jobimneto.ruy@gmail.com
7 comentários:
Ruy, nossa! De olhar o seu blog fiquei com saudade dos saraus que fizemos e disponibilizamos nosso trabalho e olha que foram muitos (Sarau do Charles, Grupo Bastidores, Lançamento do Rodrigo Capella, Biblioteca Alceu Amoroso Lima, Espaço dos Parlapatões, etc). Que seus textos continuem sendo montados, eles são ótimos! Beijo grande da Morellita.
obrigado, Morellita!
beijoka grande
Rapaiz que belo blog, ou será q eu posso monta essa peça, ela é muito boa... gostei de mais, gostaria de mostra o seu trabalha para o povo de uberaba!!!!
falaw parcero, tomara q vc escreve mais peças boa assim!!!
Belo texto!!!
Olá Ruy, gostaria de saber se posso trabalhar seu textos na minhas aulas de teatro, não vou montar para apresentação, mas sim para trabalho prático. Seu texto ficou muito bom. Fico aguardando sua resposta.
Wanessa - wanealferes@yahoo.com.br
Aff
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