sábado, 8 de setembro de 2007

Comédia para 3 atrizes

VIRGENS À DERIVA
de Ruy Jobim Neto
(C) Ruy Jobim Neto
Registro na Biblioteca Nacional sob no. 461.919 (23/06/2009)


(da esq. para a dir., Vanessa Morelli, Débora Aoni e Fernanda Sophia em cena de "Virgens à Deriva", na Livraria da Vila, São Paulo. foto: Will Prado)

"Virgens à Deriva" foi apresentada pela primeira vez no 1o. Festival de Cenas Cômicas do Espaço Parlapatões, em São Paulo, no dia 24 de março de 2007, sob direção do autor, pela Cia. 011, com trilha sonora original de Gerson Grünblatt, figurinos de Katia Niman, co-direção de Vanessa Morelli, adereços e cenografia de Ruy Jobim Neto e tendo na composição do elenco original:

PERSONAGENS:

Maria Teresa........Vanessa Morelli

Eusébia......Débora Aoni

Amália........Fernanda Sophia

CENA
um bote imaginário, no palco. O cenário é o mar, na costa brasileira. Muito sol. Calor tropical, muy provavelmente da costa da Bahia. Três moças estão remando, suando, respirando com dificuldade, limpando o suor dos rostos com os bracinhos, enquanto a luz vai abrindo em resistência.

ÉPOCA – em algum ponto da história colonial brasileira, a ser descrito pelas personagens.
No YouTube : parte 1 e parte 2

PERSONAGENS:

Maria Teresa
Eusébia
Amália


(enquanto remam, Maria Teresa faz uma breve pausa. Pega um papel que leva consigo, tirando de algum bolsículo do vestido. Pega um pote de tinta e uma pena. Relê para si uma parte, não gosta,abre o pote, leva a pena até ele e depois, no papel, reescreve com dificuldade – por causa da deriva - e sopra para secar a tinta. E finalmente começa a ler)



MARIA TERESA (lê como narradora)

- No ano da Graça do Senhor de Mil Quinhentos e Sessenta e Sete, mais precisamente numa terça-feira, à tarde, muitos homens e religiosas, canhões e mantimentos, foram para o fundo das águas e alguns deles até viraram comida de tubarões e de fabulosos monstros marinhos. De tudo, sobrou apenas um bote, ocupado por três belas raparigas, a saber: Maria Teresa, musa inspiradora de poeta trovador, Amália, filha única de traficante negreiro dos Açores e Eusébia, a mais novinha dentre as três, e que é pura e simplesmente filha de dono de uma formosa quinta na Beira. Todas virgens, virgens, sozinhas e náufragas a caminho da costa do Brasil . (à parte) Para facilitar a perfeita compreensão dos senhores presentes, a partir do nosso português arcaico, fizemos uma versão para as platéias contemporâneas, o que dispensa tecla SAP. (volta a ler a carta) Beijos desta que muito anseia por novidades nesta vida. Maria Teresa Aljubarrota. (à parte) Eu!

AMÁLIA –

Ai, Jesus, Maria, José! Que carta é essa, Maria Teresa?

EUSÉBIA –

Uma carta para a posteridade!

AMáLIA –

Eu não sabia que você sabia escrever.

MARIA TERESA –

Sei ler e escrever, ora pois.

EUSéBIA –

Uma carta para ser descoberta!

AMÁLIA –

É! Descoberta junto com os corpos de três virgens mortas! Mortas e perdidas no meio do Atlântico!

EUSéBIA –

Ai, Deus me livre e guarde (faz o sinal da Cruz ), Amália! Que pensamento funesto!

AMáLIA –

Funesto?

MARIA TERESA –

(explode alegremente) Que funesto destino aguarda estas três jovens virgens? (volta a escrever, lendo em voz alta) Quiçá encontrem vida inteligente, em terras do Brasil. Afinal, não é lá que em se plantando tudo dá? (pensa) E se plantarmos amor e aconchego? Dará no quê?

EUSÉBIA –

Maria Teresa, que insânia! Você pegou muito sol na sua cabeça, foi?

AMÁLIA –

Por que vocês duas não voltam a remar, ao invés de ficarem aí, falando sobre o nada?

MARIA TERESA –

Mas não é sobre o nada!

EUSÉBIA –

Não me parece que é sobre o nada.

AMÁLIA –

Só eu que não perdi a minha cabeça, aqui, nessas águas? Escutem vocês duas! Vamos remar que é melhor, por que ainda tem muita água até chegar naquela praia.

EUSÉBIA –

(olha e sorri) A praia...

MARIA TERESA –

(olha e aponta) Praia à vista! Vamos remar, todas!

AMÁLIA –

(respira fundo) Até que enfim!

(gesticulam as três, como se estivessem com os remos pesados)

TODAS –

Rema, rema, rema, rema, rema...

EUSÉBIA -

(começa a rezar rapidamente, desesperadamente)

Lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria, que jamais se ouviu dizer que algum daqueles que tenha recorrido à Vossa proteção, implorado por Vosso socorro e invocado Vosso auxílio, fosse por vós abandonado. Animadas, pois, com igual confiança a vós recorremos, ó Virgem das Virgens, não desprezais as nossas súplicas, oh, mãe do Verbo encarnado, mas dignai-vos propícia atendê-la. Amém.

AMÁLIA e MARIA TERESA -

(cortantes) Espera! ....Respira!.... Começa de novo!

TODAS -

(respiram profundamente. tempo. começam a rezar juntas e lentamente com cara de carola, piscando olhando pra cima)

Lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria, que jamais se ouviu dizer que algum daqueles que tenha recorrido à Vossa proteção, implorado por Vosso socorro e invocado Vosso auxílio, fosse por vós abandonado. Animadas, pois, com igual confiança a vós recorremos, ó Virgem das Virgens, não desprezais as nossas súplicas, oh, mãe do Verbo encarnado, mas dignai-vos propícia atendê-la. Amém.

(respiram. tempo. voltam a remar)

MARIA TERESA –

E se cantássemos uma canção?

AMÁLIA –

Ai... Que canção, Maria Teresa?

EUSÉBIA –

Uma canção! Como as que a Madre Superiora cantava para a gente, nos ofertórios! Ah, cada uma mais linda que a outra!

MARIA TERESA –

Uma cantiga trovadoresca! ... Tal qual meu amigo cantava para mim, em seu alaúde...

EUSÉBIA –

Eu adorava ouvir...

AMÁLIA –

Uma canção não precisa ser tão... (ri) tão casta assim...

MARIA TERESA –

Uma cantiga de amigo!

EUSéBIA –

O Cântico dos Cânticos! (dá um tempo e começa a declamar, também se excitando)
Sua boca me cubra de beijos!
São mais suaves que o vinho tuas carícias,
e mais aromáticos que teus perfumes
é teu nome, mais que perfume derramado;
por isso as jovens de ti se enamoram.
Leva-me contigo! Corramos!
O rei introduziu-me em seus aposentos

(suspira fundo, treme, quase arrepiando)
(sorri tranqüila, ao final)


MARIA TERESA –

(excitando-se, à medida que declama, as outras olham)

Dizía la fremosinha:
«ai, Deus, val!
Com'estou d'amor ferida!
ai, Deus, val!

Dizía la ben talhada:
«ai, Deus, val!
Com'estou d'amor coitada!
ai, Deus, val!

«Com'estou d'amor ferida!
ai, Deus, val!
Non ven o que ben quería!
ai, Deus, val!

«Com'estou d'amor coitada!
ai, Deus, val!
Non ven o que muit'amava!
ai, Deus val!

(recompõe-se, sorri)

AMÁLIA –

(tempo) Vocês estão inspiradas, hein?

EUSÉBIA –

Você deve ter um grande sonho de amor, não tem, Amália?

MARIA TERESA –

Ela tem, sim!

EUSÉBIA –

Ai, conta!

AMÁLIA –

O que vocês sabem? O que vocês sabem, pergunto eu? Enquanto estamos aqui, no meio deste mar, quase chegando naquela praia, ali, (Eusébia olha em direção à praia), com este sol imenso em cima de nossas cabeças... O que é que temos? Digam?

MARIA TERESA –

(cai em si) Somos virgens.

AMÁLIA –

Virgens! Somos tão virgens quanto possivelmente aquelas matas ali, que a gente vê daqui deste bote! Não sabemos nada do amor, da vida, dos prazeres carnais! Não sei se um dia viremos a saber! Tudo o que tínhamos ficou naquele navio naufragado, lá atrás. As freiras que vinham conosco agora estão mortas, possivelmente destroçadas por tubarões. Os marinheiros que comandavam aquela caravela agora não passam de meros fantasmas de si mesmos! E nós, aqui? O que somos? O que temos?

(Eusébia vê algo na praia, enquanto Amália segue falando)

AMÁLIA –

Não somos nada! Se um tubarão nos devorar agora, será muita a nossa sorte! Se chegarmos vivas naquela praia, com certeza estaremos condenadas ao degredo, à velhice sem ter conhecido os prazeres da carne, à morte por doença, por fome, por solidão!

MARIA TERESA –

Eu não quero morrer por solidão!

EUSÉBIA –

(de sopetão) Tem um homem na praia!

(todas olham)

EUSÉBIA –

Um homem vestido! (leva outro sopetão) E agora tem um outro homem, também! E está nu! Um homem nu, na praia!

(a partir deste momento, as três moças permanecem olhando em direção à praia)

AMÁLIA –

Uma canção não precisa ser tão...tão casta assim....

EUSÉBIA –

É muito maior do que nos sonhos de qualquer uma de nós!

MARIA TERESA –

Tem uma elevação! É maior que a própria vida! É a glória!

AMÁLIA –

No meu sonho de amor ... (as outras olham lentamente para Amália) ... Eu vislumbrava um navio, sempre um navio, como aqueles que meu pai possui, para traficar escravos... Eu vislumbrava este navio, que aparecia no meio de uma bruma... E dentro dele havia apenas homens...

EUSÉBIA –

Nus?

AMÁLIA –

Não. Havia apenas homens. Eles não possuíam rosto, eram apenas homens. E por serem apenas homens, sem rosto, eles vinham em minha direção. E me acariciavam... Eles me beijavam em todo o meu rosto, me arfavam pela nuca, me enlouqueciam o pescoço (fecha os olhos, sente o próprio sonho), desciam suas mãos fortes e quentes sobre o meu colo, e levantavam um dos meus seios... Beijavam um dos meus seios ... (em "seios", Maria Teresa tira uma luneta de um bolsículo de seu vestido, e começa a olhar em direção à praia). E eu gemia... Eu gemia! Os impulsos deles eram tão vigorosos, que não havia a necessidade de eles estarem nus para eu imaginá-los... E eu os imaginava...

EUSÉBIA –

Imaginava como?

AMÁLIA –

(de olhinhos cerrados) Eu os imaginava devastando meus tecidos, minhas composições, todo o meu substrato, todo o meu cerne! Eu não possuía mais nome, simplesmente não sabia mais de onde eu vinha, eu não queria mais coisa alguma...

EUSÉBIA –

Eu sei como é... ( Amália abre os olhos, Eusébia sorri para ela) Você se sente viva! É assim que eu quero me sentir, também! (torna a olhar para a praia) E vendo essas possibilidades... Possibilidades infinitas, presumo eu (olha para Amália), você começa a acreditar no seu próprio sonho de menina. (retorna o olhar em direção à praia) Você começa a pensar que tudo aquilo que você é tem um sentido... É como se soubéssemos, de antemão, a que viemos... (sorri) Porque fazemos parte do universo... Porque somos mulheres... É como se soubéssemos a resposta... Na ponta de nossas línguas...

(Maria Teresa abaixa a luneta, sorri marota)

MARIA TERESA –

Senhoras... Tomem os seus assentos... Vamos remar para a vida.

(todas, sorrindo, se posicionam no bote)

TODAS –

Rema, rema, rema, rema, rema...

MARIA TERESA –

Senhoras?... E se cantássemos uma canção?

(todas sorriem docemente, remam com vontade, a luz cai em resistência)


FIM


O texto acima está protegido pelas Leis brasileiras de Direito Autoral. É obrigatório que se solicite permissão para ser montado. Não fazê-lo será passível de ações legais. Para solicitação, falar com o autor: jobimneto.ruy@gmail.com



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“DOS MUROS DA CIDADE
EU VI TEUS OLHOS”


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RUY JOBIM NETO



Personagens:

LUCINHA
ANDRÉ

Época: 1932
Local: alguma cidade do interior paulista, durante a Revolução

***

(cena: disparos e muitas luzes, ao longe, cruzam a noite do lugarejo. ANDRÉ está numa murada, observando. LUCINHA traz café. Há uma apreensão no ar)

ANDRÉ
Já não disse pra você ficar dentro da sua casa?

LUCINHA
Mal agradecido. Trouxe café quentinho.

ANDRÉ
Me deixa tomar um gole.

LUCINHA
(brinca com ANDRÉ, mas depois passa a ele a canequinha) Essas luzes estão muito longe?

ANDRÉ
Não. (bebe um gole do café)

LUCINHA
Não é perigoso?

ANDRÉ
Sempre é perigoso, Lucinha.

LUCINHA
Ai, André! Também não é assim. Eu saio de minha casa pensando em conversar um cadinho com você e olha como você me recebe.

ANDRÉ
Lucinha, eu queria mesmo era estar lá.

LUCINHA
Na frente de batalha?

ANDRÉ
É.

LUCINHA
Por Getúlio ou por São Paulo?

ANDRÉ
Que pergunta.

LUCINHA
Você nunca me diz nada.

ANDRÉ
Claro que eu digo.

LUCINHA
Ora, temos só duas alternativas. São Paulo está lutando. Ouvi meu pai dizer que São Paulo quer a separação. E Getúlio não quer dar. Daí toda essa bagunça. Fiquei sabendo que tem cidade aí que só sobrou o padre e o prefeito. Todo mundo foi embora.

ANDRÉ
Seu irmão vai pra luta?

LUCINHA
Vai.

ANDRÉ
Eu vou com ele, Lucinha.

LUCINHA
Não seja besta, André. Meu irmão já tem idade de ir pra luta. Você só tem dezesseis. E eu também.

ANDRÉ
Eu vou aumentar a minha idade. Vou fingir que sou adulto.

LUCINHA
E sua mãe vai deixar você ir junto com as tropas? Tô pra ver.

ANDRÉ
Você nunca acredita em mim, não é mesmo?

LUCINHA
Não sei. O que você tem pra me dizer?

ANDRÉ
Lucinha, eu quero sair deste canto de mundo. Eu quero ser alguém.

LUCINHA
Você já é alguém, André.

ANDRÉ
Você não me entendeu. Eu não sou nada, não sei coisa alguma. O que eu tenho feito, durante toda essa minha vida, me diz? Arado a terra? Ordenhado vaca? Andado a cavalo? Isso é vida?

LUCINHA
Você tem toda uma vida aqui, André, não tá vendo?

ANDRÉ
Eu quero mais, Lucinha.

LUCINHA
Eu também quero mais, André. O que vai ser de mim se você for pra batalha? Já pensou nisso? E se você morre?

ANDRÉ
Vira essa boca pra lá.

LUCINHA
Vira essa boca pra cá você, André. Por que você foge tanto assim de mim?

ANDRÉ
Que deu em você?

LUCINHA
Nada. Apenas quero mostrar pra você que ir pra essa batalha não é tudo nessa vida.

ANDRÉ
Ué? E o seu irmão não vai?

LUCINHA
É diferente, André.

ANDRÉ
Como assim “é diferente”, Lucinha? Eu não tenho duas pernas, que nem ele?

LUCINHA
Tem.

ANDRÉ
Dois braços? Uma cabeça que pensa? Eu não tenho tudo isso?

LUCINHA
Claro que tem, André.

ANDRÉ
Então, qual é a diferença, posso saber? Ouvi pelo rádio que as tropas de Getúlio estão entrando por todo o Estado, por tudo quanto é lado. Isso bate estranho dentro da gente, Lucinha. Nunca se sabe o dia de amanhã. Antigamente as coisas eram mais tranqüilas. Não são mais.

LUCINHA
Não fala assim, André.

ANDRÉ
Eu sinto uma coisa aqui no meu peito, algo que me aperta aqui dentro. Não sei dizer o que é, sabe?

LUCINHA
Você quer ficar aqui e tá se borrando de medo, não é?

ANDRÉ
E eu lá sou homem pra ficar me borrando de medo? Olha como fala comigo!

LUCINHA
Ih, moleque... Tá me estranhando, é? Pensa que eu não conheço você? Sei tudo o que você pensa, aí dentro dessa sua cabeça oca.

ANDRÉ
Eu vou pra essa batalha, Lucinha. Eu vou fazer valer essa minha vida. E vai ser hoje mesmo.

LUCINHA
Que maluquice é essa, posso saber? O que você vai fazer, me diz? Vai fazer as trouxas, vai sair no meio da madrugada sem ao menos dar um único beijo na sua mãe, vai se alistar nas tropas paulistas e pegar um trem pra sabe lá Deus onde?

ANDRÉ
Isso mesmo.

LUCINHA
Pois vá. Vá, André. Vá ser besta na vida. Vá morrer no primeiro bombardeio, na primeira granada que tiver, vá ficar sem uma perna.

ANDRÉ
Quer parar, Lucinha? Tá me agourando, é?

LUCINHA
André. Eu sei o que se passa no seu coração. Sei melhor do que você mesmo.

ANDRÉ
Lucinha.

LUCINHA
Agora me escuta, André. Há muito tempo que eu sei o que você sente por mim, e isso conta, sabia? Todas aquelas nossas brincadeiras correndo, tomando banho no rio, pulando cercado, subindo em árvore. Pensa que eu não lembro dessas coisas? Pensa que eu não reparo nos seus olhares pra mim, no meio das festas? E de como isso me enche por dentro? Eu sou mulher, André. Sou novinha, mas já posso ter uma vida. Daqui a pouco eu vou me casar, sabe lá Deus com quem. E eu preferiria me casar com você.

ANDRÉ
Comigo?

LUCINHA
Com você, André. Você acha que eu não morro de medo de você se bandear pra essa revolução sem eira nem beira e morrer por aí? De eu nunca mais ver você? E aí num belo dia, a gente recebe um telegrama dizendo que você foi morto em batalha, que foi um herói? E pra que isso serve, André? Você não pensa nessas coisas?

ANDRÉ
Casar comigo?

LUCINHA
É, André. Ou você quer que eu me case com algum caixeiro viajante por aí? Alguém que me leve pra capital e me encha de filho, e eu fique trancada dentro de um casebre, num bairro fedorento e cheio de gente estranha?

ANDRÉ
Não, Lucinha.

LUCINHA
Eu penso nessas coisas, André. Uma batalha é tudo muito bonito, muito cheio das valentias, coisa e tal. Mas as pessoas morrem, ou voltam pra casa sem uma perna, sem um braço. Isso tudo um dia vai acabar, sabe lá Deus quando. Se é São Paulo, se é Getúlio que vai ganhar, não sei. Pra dizer a verdade nem quero saber.

ANDRÉ
Não?

LUCINHA
Eu também sinto coisas aqui dentro de mim, André. E quando eu coloco meus pés na terra, aí é que eu sinto que eu pertenço a alguma coisa. Não sei se você me entende.

ANDRÉ
Mas o seu irmão não vai...

LUCINHA
O meu irmão tem vinte e dois anos. Chegou a hora dele. A sua ainda não, será que você não percebe isso? É tão complicado assim?

ANDRÉ
E se eu for pra batalha e depois voltar pra me casar com você?

LUCINHA
Não conte com isso, André.

ANDRÉ
Por quê?

LUCINHA
Nunca se sabe o dia de amanhã, não foi você mesmo quem disse isso?

ANDRÉ
Tá me ameaçando, Lucinha?

LUCINHA
Não. Eu só estou querendo mostrar coisas pra você.

ANDRÉ
Me dá um beijo de boa sorte?

LUCINHA
Como é que é? Um beijo?

ANDRÉ
É. Um beijo de boa sorte.

LUCINHA
E depois você se bandeia pra essa guerra?

ANDRÉ
É.

LUCINHA
E depois você sai no meio da madrugada, sem dar um único beijo na sua mãe, e pega o trem e vai pro front de batalha?

ANDRÉ
É.

LUCINHA
Não. Fique longe de mim. Beijo é o que você não vai ter de mim de modo algum.

ANDRÉ
E se eu virar um herói?

LUCINHA
Sem beijo, André.

ANDRÉ
E seu for condecorado, e ganharmos essa revolução e me derem dinheiro suficiente para eu morar na capital, em São Paulo, ou quem sabe... No Rio de Janeiro? Já imaginou?

LUCINHA
Sem beijo, André. Nem vem.

ANDRÉ
Lucinha, assim você me põe louco.

LUCINHA
Ótimo.

ANDRÉ
Um beijo.

LUCINHA
Não.

ANDRÉ
Ué, não foi você mesma que falou que se casaria comigo?

LUCINHA
Daqui uns dois ou três anos, quem sabe.

ANDRÉ
Então, Lucinha.

LUCINHA
Ai, mocinho. É impressionante como vocês têm idealismo. Chega a ser bonito, sabia? Eu também não sei nada desta vida, e queria aprender ao seu lado.

ANDRÉ
Então, Lucinha.

LUCINHA
André, nem vem. Põe essa sua cabeça pra pensar. E depois você me diz se eu não estou certa.

ANDRÉ
(tempo) E se eu disser que eu amo você, Lucinha?

LUCINHA
Nem vem, André.

ANDRÉ
Eu não sei falar essas coisas. Mas eu penso que a gente, em algum momento dessa vida, a gente tem que amarrar o cavalo, sabe?

LUCINHA
Amarrar o cavalo?

ANDRÉ
Eu penso em ter alguma coisa a mais além das terras do meu pai, quando ele morrer. Eu penso em ir pra capital, pra alguma capital, não importa. Eu quero uma vida diferente, Lucinha.

LUCINHA
E o que tem você dizer que me ama com isso tudo? Você quer me levar junto?

ANDRÉ
Eu não sei pensar essas coisas direito. Mas no dia-a-dia desta fazenda, ordenhando vaca, plantando fruta e verdura, eu sinto que não vou crescer. E aí me aparece essa batalha toda, essa gente toda indo pra revolução, o seu irmão, essa coisa que parece que não tem fim.

LUCINHA
Eu posso ajudar você, André.

ANDRÉ
Tem coisa que eu não sei qual é o limite que o homem faz, ou a mulher faz. Eu vejo o meu pai cuidar das contas, a minha mãe fazer os quartos, a comida. E eu acho isso tão pouco. E daí eu vejo esses soldados indo para a frente de batalha. Eles têm um brilho nos olhos, você já viu o brilho nos olhos deles, Lucinha?

LUCINHA
Não.

ANDRÉ
Tem tanta coisa que eu não sei dizer.

LUCINHA
Você já disse, André. (beija-o delicadamente, com muita ternura) Vá, meu soldado. Parece que eu estava vendo esta cena num sonho meu. A gente se despedia, você fazia sua trouxa, pegava um trem, e eu ia até à murada da estação pra ver o que se passava aí dentro do seu coração, bem de longe. Aí, eu pude sentir, dos muros da cidade eu vi os seus olhos, e vi que eles não eram pra mim.

ANDRÉ
Lucinha. (tenta beijá-la, ela se esquiva)

LUCINHA
E eu posso ser muito melhor mulher para você, estando de longe, André. É muito estranho eu dizer isso, justamente eu que tenho esses meus olhos brilhando quando eu vejo você. É hora de eu aprender, também. Vá. Eu já dei o beijo de boa sorte. Me devolve a caneca de café.

ANDRÉ
E se eu morrer, Lucinha?

LUCINHA
Eu vou ler o telegrama.

ANDRÉ
E se eu voltar, Lucinha?

LUCINHA
Eu vou ler o telegrama.

(ANDRÉ devolve a canequinha para LUCINHA, que olha para o fundo dela, vê que ainda tem café)

LUCINHA
E trago um café quentinho.

(LUCINHA bebe o último gole, olhando para ele, e depois sorri, enquanto as luzes se apagam em resistência, sob os lampejos ao longe, da batalha).


FIM

O texto acima está protegido pelas Leis brasileiras de Direito Autoral. É obrigatório que se solicite permissão para ser montado. Não fazê-lo será passível de ações legais. Para solicitação, falar com o autor: jobimneto.ruy@gmail.com




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